Os novos piratas da TV



Existem formas de desbloquear canais codificados. O crime é punível com pena de prisão, mas tal facto não parece assustar quem o pratica

 
 
     
 

São quase nove horas da noite. Em casa, o grupo de amigos junta-se em frente à televisão para ver o Sporting – Twente. Com uma cerveja na mão e esgrimindo prognósticos sobre o resultado, todos se sentam confortavelmente em frente ao televisor LCD de 32 polegadas, que ostenta já o logótipo da SportTV. O cenário é semelhante ao de inúmeras salas de estar espalhadas pelo país, mas há uma diferença: é que o dono da casa não é assinante do canal de desporto, muito embora todos estejam a ver o desafio no televisor.

Nem o Sporting de Portugal ganhou o jogo, nem o operador embolsou o valor de cerca de 24 euros que deveria ter recebido por fornecer o canal especializado. E da mesma forma que o grupo de amigos teve acesso à SportTV, pode ter a qualquer canal codificado, caso pague a quem saiba desbloquear os canais. A simplicidade do sistema é óbvia. A caixa com o cartão é ligada à Internet e o software ocupa-se da busca dos códigos necessários para o desbloqueamento dos canais na maior das redes. O utilizador nada tem que fazer para além de esperar que o sistema faça o seu trabalho, um processo concluído em menos de um segundo (veja a caixa).

A despeito dos esforços dos operadores para criarem sistemas invioláveis, há quem consiga dar a volta à questão e desbloquear cartões de acesso a canais codificados.


Moldura penal prevista na lei
Manuel Lopes Rocha considera que mais cedo ou mais tarde os juízes terão de ser aconselhados em permanência por um perito
A PCGuia falou com Manuel Lopes Rocha, advogado da PLMJ - A. M. Pereira, Sáragga Leal Oliveira Martins, Júdice e Associados, especializado em casos de violação de direitos de autor, que referiu que, em casos deste género «nem há muito por onde “inventar”», uma vez que «são situações claramente previstas na Lei». O advogado esclarece que «há dois bens jurídicos em causa: a integridade e intangibilidade do serviço protegido e os direitos do organismo de radiodifusão sobre as suas emissões», pelo que quem desbloqueia os canais incorre, pelo menos, em dois crimes. A moldura penal em vigor prevê a possibilidade de pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias para quem utilizar as emissões sem pagar. O crime de usurpação inerente está previsto e punido no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. No que respeita à utilização de dispositivos ilícitos, a pena aplicada pode também envolver prisão, «no caso da alínea a) do nº1, do art.º 104º», ou só coima, nos restantes casos. Manuel Lopes Rocha adverte ainda para o facto de que «a mera detenção de dispositivos ilícitos, mesmo que não seja para fins comerciais, também pode dar lugar à aplicação de uma coima, como se vê na redacção posterior do art.º 104º da Lei das Comunicações Electrónicas (Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro, sucessivamente alterada).

Convidado a comentar esta nova abordagem ao desbloqueamento de canais protegidos, o especialista explica que «onde há a lei, a ordem, há a infracção; é uma regra cuja origem se perde na noite dos tempos». Mas vai mais longe. Manuel Lopes Rocha sublinha que «entre nós, sempre se encarou a propriedade intelectual, seja a do autor, seja do inventor, de ânimo muito leve. É típico de uma sociedade atrasada. Mas o discurso dos titulares dos direitos também é pobre.» Para o advogado, tudo se resume a uma questão de princípio. Quem quer ter uma sociedade baseada no conhecimento, «tem de a proteger». A protecção dos direitos de autor em Portugal é débil: «as multinacionais defendem- -se, mas os nossos criadores e inventores, se não forem ajudados pelo Estado e por organizações privadas fortes, não vão lá», conclui.

Protecção legal não chega
De resto, Manuel Lopes Rocha adverte para a necessidade de os operadores de TV se protegerem juridicamente, mas salienta a importância de aperfeiçoar os mecanismos tecnológicos de protecção.

Há casos deste género que chegam às barras do tribunal. Nesse caso, «a nível da norma, há solução». Mas verifica-se ainda a necessidade de especialização dos tribunais. «É uma estupidez pedir tudo aos juízes. Como pode um juiz saber de tudo, numa sociedade tecnologicamente sofisticada?», questiona Manuel Lopes Rocha. A solução passa por especializar e «encarar a criação de tribunais mistos, mais tarde ou mais cedo, nos quais o juiz tenha um perito, junto a si, em permanência. Se assim não for, esperam-nos anos muito funestos». Em jeito de conclusão, o advogado deixa no ar uma questão: «Como vai ser quando explodir o cibercrime nos tribunais?». É que, segundo o entrevistado, já faltou mais... Contactada pela PCGuia, a Zon não quis comentar este assunto, mas referiu, a título estratégico, que «a empresa está empenhada em preservar constantemente a qualidade dos seus serviços e tem tomado medidas para que os seus sistemas sejam cada vez mais invioláveis». A fonte da operadora nacional garantiu que a companhia «está atenta a todas as tentativas de violação dos seus serviços» e «manifesta disponibilidade em colaborar com as entidades reguladoras nesta área sempre que necessário». A PCGuia pediu ainda esclarecimentos à Meo, mas também esta empresa se mostrou renitente em abordar esta temática.


AO DETALHE
Vamos chamar-lhe “Miguel” (nome fictício). Tem formação na área de tecnologias de informação e dedica-se, nos tempos livres, a desenvolver sistemas de desbloqueamento de canais protegidos por código. Vende por cerca de 300 euros por cada sistema e cobra uma anuidade variável.

Miguel refere que «existem vários sistemas que utilizam o acesso à Net, mas os mais vulgares são os que recorrem a sharing normal e ao net card». No primeiro, existe a emulação de um cartão que recebe os pedidos e os reencaminha para o servidor de chaves. E é necessário comprar um receptor que comunica com o servidor através de uma porta de rede normal. O net card «é um cartão que pode ser utilizado com um receptor já existente» (cobra 100 euros por seis meses de utilização). Neste caso, ele próprio está ligado à Internet, «sendo por isso mais vantajoso para quem não pretende comprar o receptor». O nosso entrevistado refere que o sharing é o sistema mais vulgar, uma vez que «a informação de como “crackar” não é "universal" e quem a tem prefere rentabilizá-la, criando redes de utilização pirata que lhe conferem uma maior segurança, retorno e controlo». Seja qual for o sistema, o modo de funcionamento é semelhante: o pedido é feito e pelo software ao servidor que está a controlar as chaves e estas são facultadas em tempo real. Depois de instalado o sistema, o desbloqueamento do canal codificado «demora cerca de um segundo», sublinha.

Questionado sobre as suas motivações, Miguel explica que o retorno de cerca de 100 euros anuais por cliente é a principal vantagem. O jovem afirma saber que o que faz é ilegal, mas não vê imoralidade no processo. Em declarações à PCGuia, esclarece que «os operadores sentam-se na sua cadeira de arrogância e pensam que por serem grandes empresas conseguem combater a pirataria». Miguel sublinha que, «muitas vezes, é esta arrogância que motiva os piratas a tentar quebrar a segurança dos sistemas».

Os seus conhecimentos na área já lhe valeram contactos junto a operadores, nomeadamente no sentido de aproveitar o seu know-how para criar um sistema de protecção com mais garantias, mas Miguel explica que «em determinados aspectos os operadores parecem preferir que haja alguma pirataria», já que «há muita gente que, caso não tivesse os canais codificados "livres", não pagaria a assinatura e não seria cliente».

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